Alexis iglesias

Las trampas de la fe

24.03.2022

Curadoria: André Fernandes

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Entretelas, entremundos:
Condição humana da insularidade cuja síntese é a vida como processo artístico

André Fernandes
São Paulo, fev 2022

Na exposição Las trampas de fe (2022), na Galeria Quarta Parede, em São Paulo, o cubano Alexis Iglesias evidencia o que está na base da construção artística: percepção e crença – percepção do mundo pelos sentidos e crença de que existe um desejo permanente de transformá-los em linguagem. As armadilhas apresentam-se ao fazer coincidir experiência e mundo. Desse modo, a pintura é para o artista uma possibilidade de produzir outras realidades, utilizando o que aprendeu na Academia de Belas-Artes San Alejandro, a fim de dialogar com a história da pintura sem se descolar completamente da vida.

Desde que chegou ao Brasil vindo de Cuba em 1993, Alexis Iglesias dedicou-se principalmente à pintura, dando a ela o mesmo estatuto de respirar, caminhar, comer, dormir, transar, porque entende que razão, imaginação e entendimento não devem ser separados, tampouco hierarquizados quanto ao privilégio de um ou de outro, cujo risco é incorrer em abstrações vazias ou numa experiência caótica. Por isso, o título da exposição destaca aquilo que está na base da construção da realidade.

O debate a que Alexis Iglesias se propõe a desenvolver brinca no jardim das pinturas. Brinca em pelo menos dois sentidos, jogando com a técnica e com as relações entre as imagens, sem necessariamente se deixar deter pelas categorias: academicismo e modernismo, figurativo e abstrato, história e subjetividade, e tensionando as relações do que chama de “sua cozinha”, isto é, do interior da pintura, o que pode conduzir à pergunta em que medida a imagem não é ação e produtora de consequências na realidade e a realidade na imagem, essa imagem que faz da alegoria seu veículo?

“Alegoria é a metáfora continuada como tropo de pensamento, e consiste na substituição do pensamento em causa por outro pensamento, que está ligado, na relação de semelhança, a esse pensamento.” (LAUSBERG, H. Manual de retórica literaria, Madrid, Gredo, 1976, t. II, 283 e ss. apud HANSEN, J. Alegoria, São Paulo, Hedra, 2006, p.7)

Alegoria compreende então um modo; não algo abstrato, mas carne da experiência que cria mundos. Emprestando seu olhar e fornecendo indícios de intuição, experiência, princípios e distâncias, o artista concede particular atenção à dignidade do processo  criativo, ao mostrar como compreende o próprio processo, que coincide com seu estar no mundo. Pois é daí que se precipitam perguntas sobre superfícies luminosas e opacas que refletem imagens e sombras, resultados das escolhas artísticas.

Em Mal-estar do desejo (2022), por exemplo, Alexis apresenta uma elaboração da conhecida tela As meninas (1656), de Velázquez, onde a infanta Margarida e entourage são surpreendidas pela presença do rei Felipe IV de Espanha, enquanto o artista trabalha. Chama atenção que no século XVII o pintor apareça quase ao centro da tela e olhe para fora dela. Alexis se apropria dessa imagem para chamar atenção para o processo criativo. A apropriação é indicada pelo aspecto inacabado da pintura em aguadas e pelo apagamento de detalhes para dizer expressamente que em nenhum momento pretende imitá-la. Nesse sentido, a escolha da técnica situa a pintura distante da cópia e mais próxima do esboço. A apropriação é antes um gesto para lembrar que o ofício do pintor conserva certa dignidade no espaço íntimo da criação. E, ao fazer isso, Alexis diferencia etapas e processos artísticos, a saber, quando o que há é apenas uma cogitação no artista, quando cogitação se materializa no seu fazer com tintas, pincéis e tela e, por fim, ao tornar-se produto simbólico capaz de mediar relações. A diferença nos detalhes, como dispor apenas a silhueta do pintor, designa alguma percepção crítica de si mesmo, mostrando que não necessita sequer que os olhos permaneçam. Essa alusão ao olhar e ver uma realidade é uma alusão negativa, tanto para  o olhar quanto para a realidade, pois supõe que jamais uma realidade é dada, mas construída. É desse modo que os olhares do fundo do espelho mais ao centro da tela parecem fornecer a evidência da dúvida ao revelar a cara do espectador. Aí está a ironia,  supor que o artista revela algo; de fato, mostra a dúvida em relação ao que vê e ao que crê, como que dizendo: “crer… creia quem vê”.

Na construção desse jogo de relações, projeções e reflexos difusos, há ainda outros elementos.

Uma mancha dourada desce verticalmente como resultado do gesto que é olhar, e olhar de novo e, talvez, vislumbrar outras possibilidade, pois como já se disse: um clássico é aquilo que começa e nunca termina de dizer. O gesto é a tentativa encontrar na imagem algo que a atualiza sob uma outra aparência. No caso, perguntando: como cada um e todos estão presentes no mundo, para comutar figura e realidades por meio de ação pictórica. Ou, ainda, de modo mais próximo: onde está atenção enquanto o artista realizaseu trabalho? Provavelmente, a atenção dos corpos deslizantes está capturada em telas luminosas de onde os reflexos os miram fixamente, revelando suas caras, sem que se apercebam. Hoje, tudo passa rápido demais. E qual será o mal-estar do desejo? O artista mostra por meio de um aparelho estranho, em planos variados, que é a impossibilidade de se demorar, sem poder olhar e olhar novo as coisas do mundo pelos meios da pintura e articular as partes pela linguagem que fazem mundos muito mais lentamente.

Em outro dos trabalhos, Experiência do vazio (2021-2022), o mesmo aparelho investiga a paisagem de outro plano, como se a pintura de gênero estivesse num outro tempo, como uma realidade virtual inalcançável, de onde se descola um rumor de mar, quase silêncio, sugerindo o absurdo, apesar do gesto, apesar do movimento, apesar da linguagem da qual escorre algo que insinua a impossibilidade de captar tudo, como se tudo estivesse posto e não houvesse causa, apenas tudo existisse, como em Acidente da matéria (2020). O ser humano como um grão de areia então pode ser acidente da matéria, mas todos estão vivos ou, diria Duchamp, “quem morre são os outros”, e vivos produzem linguagem insuficiente como condição humana. Em A fonte tudo se reduz… a mesa vazia onde todos estiveram presentes e já não estão, memento mori, mais uma vez um silêncio entre os homens e o ruído explode nas coisas.

Outro elemento, um aparelho delgado, personagem da alegoria da ação sem causa, expõe as dúvidas quanto às possibilidades das linguagem humanas, a necessidade de falar e retomar a fala até que se dê alguma aproximação com o outro, apesar de toda dessemelhança. A produção de uma linguagem é uma busca sem descanso. Assim, Alexis Iglesias parece dispor-se num espaço entre, numa antessala, apostando na construção de valores íntimos, nas relações comunitárias ausentes no dia a dia, tais são os personagens da ceia. De onde surge a pergunta: de que modo a imagem não constrói uma realidade as demais realidades? De que modo se diferenciam? Representação, imitação, alegoria, coisas do mundo, princípios, crença, todas supõem uma linguagem e um território. Para Alexis, trata-se de ver pela pintura como podem se ampliar os horizontes dessa exploração.

É necessário dizer então que em seu desejo de fundar um território na vida que o artista se inscreve em pinturas cujos planos parecem divergir que reivindica a possibilidade de transitar da mesma maneira entre elas, lançando mão de sua liberdade, seu território e sua imaginação, sem ingenuidade. Não à toa, o último trabalho feito para a exposição é a instalação Ironia do desejo (2022), na qual desenho, fios e cerâmicas tomam o espaço em formas que remetem às telas como num retorno cíclico de seu esforço. Desse modo, esses trabalhos podem ser tomados numa espécie de dimensão meditativa e metafísica, que do espírito saem e a ele retornam, não apenas como uma imagem a ser vista, mas como uma realidade a ser dividida – o testemunho de uma experiência plástica – mais do que uma recordação, uma atmosfera do que se perde na linguagem. Pois, se o que está em jogo numa batalha concreta, é um território, que ao fim da batalha é muita vez esquecido, deixado de lado, o que há de mais importante num enfrentamento entre campos de forças são as narrativas que constituem a alegoria: um lugar do qual não se pode ser desterrado –, para o artista, o próprio entendimento da arte. Aquele que rege as relações dessa batalha imaginária, que ao recuperar em telas conhecidas intervém com aprópria história, com narrativas que lhe foram contadas, onde descansa num lugar digno o que aprendeu na Academia de Belas Artes  San Alejandro.

Finalmente, resta situar Alexis Iglesias na vida. Em 1993, imigrou de Havana a São Paulo, onde permanece estrangeiro. Estrangeiro é condição que nunca se dissipa totalmente, língua, silêncios e documentos oficiais. Apesar dos diálogos a que se lança, da aproximaçãocom a cultura alheia, essa condição errante é parte do que se mostra entre uma história totalizante e uma plausibilidade simbólica particular. Dessa mediação entre signos perdidos aparece algo que se perdeu na tradução. E é esse algo que deve ser procurado aqui, pois o artista reivindica sua liberdade criativa e seu fazer nesse espaço que supõe um observador maduro e autônomo, capaz de enxergar o que deixou cujo valor para ele é inestimável