SOMBRAS MIGRATÓRIAS
Alexis Iglesias, Carlos Estévez e J. Pavel Herrera
19.11.2022
Emigrar significa deixar para trás muitas coisas que identificam o emigrante com seu lugar de origem. Não se trata apenas do abandono territorial de um país, más com ele as raízes e a ruptura, por vezes definitiva, com uma determinada realidade. É também afastar-se dé uma tradição cultural – e às vezes da língua materna- para entrar no dominio de outra até então desconhecida e alheia. Os imigrantes, durante o século XX, foram alguns dos principais protagonistas da vanguarda europeia, como os russos Chagall, Malevich e Kandinsky, os espanhóis Picasso e Juan Gris, e o americano Man Ray, exilado em Paris entre as guerras, o centro irradiante dos principais movimentos artísticos. Também foram imigrantes os pintores cubanos Marcelo Pogolotti, Wifredo Lam e Julio Girona. Eles, como tantos outros pintores latino-americanos, deixaram sua terra natal em algum momento para se estabelecer na Europa e nos Estados Unidos. A partida pode ser temporária ou definitiva, más o propósito é sempre o mesmo: encontrar novos horizontes.
Sombras migratórias
Alexis Iglesias (1968), Carlos Estévez (1969) e Pável Herrera (1979) se reúnem pela primeira vez para oferecer uma visão geral do mesmo fenômeno. Se algo peculiar os identifica, é que os três são de origem cubana – todos os três de Havana -, e criadores com vasta experiência profissional. Que a exposição seja realizada em São Paulo, Brasil, se encaixa muito bem no significado do título escolhido: Sombras Migratórias. O efeito, porém, que esse tema pode causar no telespectador brasileiro é semelhante ao que teria em outro lugar do planeta, pois o local não altera a natureza da mensagem. Pela sua relevância e pelas conotações sociais, políticas, económicas e culturais que encerra, vincula-se a qualquer experiência artística da mesma natureza.
Alexis Iglesias e a busca por sua própria identidade
Falar com Alexis Iglesias é ouvi-lo falar espanhol com sotaque português. Às vezes, depois de tantos anos morando em São Paulo, Brasil (emigrou de Cuba, aos 25 anos), ele tem dificuldade em encontrar a palavra exata que quer usar em espanhol. Dei-lhe aulas de desenho quando tinha treze anos na Escuela Elemental de 23 y C, em Vedado, Havana. Agora ele é um homem de cinquenta e quatro anos, mas ainda vejo a mesma disposição do Alexis daquela época. «Meu desejo -diz- é observar o processo criativo em sentido amplo e, a partir daí, entender meu próprio processo: saber quem sou, quais são as coisas que me interessam, tudo o que preciso aprender para me aproximar o que eu quero. , porque nunca sei que rumo essa ideia vai tomar. E acrescenta: «Procuro usar as experiências artísticas como recursos e não como soluções. Recursos que descubro na improvisação: escolho e faço». Assim se explica o pintor, formado no Liceu San Alejandro em 1987, especializado em pintura, e formado em Educação Artística pela Faculdade de Letras Teresa de Ávila (FATEA), Brasil, 2003.
A intuição e seus resultados
Na obra de Alexis Iglesias, observa-se o efeito de uma síntese muito bem-sucedida entre o Ser Humano e a História convertida em unidade. Ninguém encontrará figuras antropomórficas, anedotas pintadas ou qualquer outra forma de representação em uso. Como símbolos, os elementos que ele utiliza narram a aventura do homem no que ele tem de racional e sensorial, e no que oferece de real e virtual. Os instintos, os afetos, as ideias que temos sobre as coisas e a forma como elas se manifestam – representadas em desenhos como Depois do sexo e A forma de consciência (2013), e Afeto disorderado (2015) – refletem um processo de investigação no nascentes da natureza humana e seu meio social, de onde emerge um sentido moral que não prega nenhuma moralidade, mas é codificado nos temas discutidos.
O propósito de combinar intuição e conhecimento técnico para que “juntos se tornem minha expressão” é notável dentro de um esforço ao qual Alexis atribui grande importância, e que encontramos presente desde o início até a conclusão de cada trabalho. Um trabalho que não se apega aos seus resultados porque o artista parte do critério de que os seres humanos, na sua abordagem da realidade, criam “processos diferentes”, tanto para a compreender como para se compreenderem e conhecerem o lugar que ocupam. Seu interesse, portanto, centra-se na análise das conexões com outras fontes (literatura e história, por exemplo) que lhe permitem criar fluidez na elaboração do produto. Afinal, tudo o que o ser humano é, e o desenvolvimento que ele alcançou, e não pode ser explicado de outra forma senão através de sua própria história. Do ponto de vista factual, trata-se de representações que se conectam com a mais seleta linguagem pictórica contemporânea, aquela que exige do espectador uma atitude menos passiva.
Alquimia em Carlos Estévez
Universidades, museus, fundações e galerias são locais frequentes onde Carlos Estévez, artista com um currículo impressionante, expõe o seu trabalho. Também tive o privilégio de ensiná-lo na mesma academia de arte, e daquela época ainda me lembro do enorme número de perguntas com que ele me bombardeava diariamente. Foi, então, a forma que teve de mostrar o seu incipiente interesse por uma actividade que anos mais tarde acabou por ser a sua profissão, e que agora define como “uma forma de aprendizagem” através da qual “compreende a vida”. A existência artística e a existência vital são, para ele, inseparáveis: «O que penso, o que sinto e todos os meus sonhos – confessa – estão contidos na minha obra de arte».
A arte como forma mágica de comunicação
Pela sua forma de raciocinar, Carlos Estévez mostra-se bem instruído em matérias e processos relacionados com a alquimia: «Eles (os alquimistas) procuravam a fórmula para fazer ouro, e o que encontraram foi o conhecimento. Meu objetivo é encontrar conhecimento através da arte, traduzir essas experiências em imagens e compartilhá-las com outras pessoas.” Al assumir a finalidade da arte como «una forma mágica de comunicação» que explora «a existência humana», a chave que Carlos oferece consiste em olhar-se para si mesmo, o mais profundamente possível, para poder entrar em contato «com os territórios mais profundos dos demais”. Seu evidente domínio, bem como a profundidade alcançada nas questões da criação, deve-se, em parte, às intensas leituras filosóficas que realiza. São leituras que dotam seus trabalhos muito experimentais de uma estranha objetividade. Mas, embora marquem sua forma de se expressar, não a determinam, pois o artista não extrai nenhum conceito premeditado de suas leituras. Tudo o que você lê funciona apenas “como combustível” e “como inspiração” para realizar “o trabalho”.
Ao utilizar diferentes meios de expressão (desenho, pintura, escultura, instalação, e aquilo a que Carlos Estévez chama «busca de objetos»), confere à sua obra uma notória diversidade. Como ele explica, somente agindo assim – e através de um trabalho muito rigoroso – ele consegue expressar a complexidade de seu mundo interior. Por isso, acrescenta, “deve ser muito detalhado”, pois cada recurso – imagens, cores, texturas, linhas e até o título da peça – é de grande importância. Graças à maneira elaborada de trabalhar, e toda aquela intensa atividade intelectual demonstrada, não é muito fácil acessar o verdadeiro significado de alguns desenhos esplêndidos e ao mesmo tempo herméticos. Em cada um, aprecia-se algo mais do que o mero suporte de conteúdo artístico e filosófico, ou seja, um interesse em mergulhar nos processos de pensamento e formas de percepção que o artista de origem cubana, em sua ânsia de encontrar respostas, explorar.
Pavel, a paisagem e suas relações
Josué Pavel é formado em Belas Artes (ISP Enrique José Varona, em Havana, 2004) e mestre em Artes Visuais, Poéticas Visuais e Processos de Criação (UNICAMP, São Paulo, Brasil, 2020). Entre as duas datas, lecionou arte e fez curadoria de arte em Cuba e no Brasil. Ele nasceu em 1979, o último ano de uma década sombria para a cultura cubana e o início de outra que foi felizmente crucial para seu futuro. Eram tempos de intensa e acalorada polêmica motivada pelas mudanças que ocorriam no âmbito da arte e da literatura no país caribenho. Tempos, também, em que passou a infância do futuro artista.
Da paisagem às suas diferentes formas de representação
Em Pavel, há um interesse pela paisagem que se reflete no trabalho que realiza. Não se trata da forma como costuma ser representado, más das diferentes formas como pode ser entendido, o que permite ao autor estabelecer “relações entre os conceitos de território, fronteira, espaço e memória”. Como centro de investigação artística, a paisagem torna-se para ele “um espaço que carrega memórias” que “estabelece conexões com vários processos na história dos contextos em que seu trabalho se desenrola”. Inevitavelmente, verifica-se que a obra exposta reflete a marca dos fenômenos migratórios em Cuba e que a ideía da viagem, “como símbolo de fuga, de transgressão”, permanece em estado latente. É a percepção de um fenômeno impossível de ignorar -tanto da realidade da América Latina como do Terceiro Mundo- e que afeta Cuba. Assim, em Construindo uma ilha (2016-2019), encontramos a fragmentação premeditada de um território (no caso uma ilha). E um território é o espaço. Espaço social, conforme definido pela professora norte-americana Kristin Ross em seu livro The Social Space. Rimbaud e a Comuna de Paris (2018). Encontramos a mesma intenção em outras obras também relacionadas ao espaço e ao movimento humano, sempre oferecidas de forma elíptica e simbólica, como Punto de fuga (2018). A referência parte agora de um “passaporte pessoal”, através do qual o autor consegue uma peça de grande interesse pelas suas conotações imediatas e pelo que, do ponto de vista simbólico, contém. Idéia, por outro lado, notória em sua força expressiva e original. Vistas como um todo, as peças de Pável podem parecer um tanto frias. A frieza decorre da necessidade de manter a distância necessária em relação ao objeto de análise, cuja intenção ultrapassa o emocional para dar lugar aos processos reflexivos e cognitivos, finalidade essencial desse tipo de trabalho.
Sombra e luz
Todo fenômeno migratório traz consigo uma reavaliação do conceito de pátria. José Martí, que também sofreu o exílio, disse que “Pátria é humanidade”, ideia que rompe com o molde estreito do nacional para se estender ao mundo; “É aquela porção da humanidade que vemos mais de perto e na qual nascemos.” Talvez pela mesma razão, para além da dor que a partida da pátria causa, e da saudade que deixa, abrem-se diferentes formas de assumir o velho sedimento. A assimilação do que até então era alheio torna-se inevitável, e desse encontro (ou embate) acaba surgindo um novo ser com uma nova identidade.
Exceto onde as caraterísticas de uma cultura estrangeira aparecem mais bem definidas ou internacionalizadas, culturas menos conhecidas só existem na pessoa do imigrante; o ambiente onde se encontra agora os neutraliza, tornando-os um produto exótico. Não sendo o caso da cultura cubana, uma das mais conhecidas da América Latina no mundo, o cubano que hoje vive em São Paulo, Miami ou Sevilha nunca mais será aquele que deixou seu território para trás. Não é o mar que se interpõe entre ele e sua vida anterior, são os efeitos do deslocamento, a assimilação de outros valores e experiências. É um processo que costuma ser designado por vários nomes, transculturação, aculturação, etc., termos da antropologia. Prefiro assimilá-lo como uma troca que implica perdas inevitáveis, mas também benefícios indiscutíveis. «No aspecto humano -diz Alexis Iglesias- meu principal ganho é ter aprendido a observar o homem não como parte de uma cultura, más como uma espécie. Porque para além de uma cultura existem sentimentos muito naturais e comuns que nos unem a todos e nos levam a ver os outros como família, não a família como cultura». E acrescenta: «É verdade que tive de aprender uma língua e adaptar-me a ela, mas ganhei muito mais nessa visão global e ampla do ser humano, sem me debruçar sobre as suas características culturais, algo que me ajudou mesmo no meu trabalho docente para poder aceder ao mundo interior das pessoas que ensino e compreender o que cada um sente». “A longo prazo – conclui – essa experiência permeou meu modo de ver e compreender outras culturas, pois me permitiu apropriar-me delas, rompendo assim com uma estrutura tradicional”.
José Pérez Olivares (Santiago de Cuba, 1949).
Poeta, pintor, desenhista. Graduado em Artes Plásticas pela Escola Nacional de Arte de Cubanacán, 1972. Graduado em Artes Plásticas, com especialização em Pintura, pelo Instituto Superior de Arte (ISA), 1987. Ao longo de sua vida, ele ensinou arte em diferentes academias cubanas. Entre 1994 e 1996 foi professor do Instituto de Belas Artes de Medellín, Colômbia. Como artista plástico, tem mais de uma dezena de exposições pessoais de desenho e pintura espalhadas por Cuba, Colômbia e Espanha, além de sua presença em inúmeras mostras coletivas nacionais e internacionais. Como poeta, publicou mais de treze títulos, duas antologias sobre poetas espanhóis contemporâneos e um livro de ensaios sobre a vida e obra do escritor cubano Reinaldo Arenas. Desde 2013 tem nacionalidade espanhola.
Foi professor de Alexis Iglesias e Carlos Estévez no início dos anos 80s.