Zilamar Takeda

A mão e o tempo

07.06.2019

Curadoria: André Fernandes

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A mão e o tempo

 

Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra. É nessa existência única, e somente nela, que se desdobra a história da obra. Essa história compreende não apenas as transformações que ela sofreu, com a passagem do tempo, em sua estrutura física, como as relações de propriedade em que ela ingressou. Os vestígios das primeiras só podem ser investigados por análises químicas ou físicas, irrealizáveis na reprodução; os vestígios das segundas são o objeto de uma tradição, cuja reconstituição precisa partir do lugar em que se achava o original.

Walter Benjamin. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, 1955.

 

A presente exposição coloca o trabalho de Zilamar Takeda em diálogo com a observação que Walter Benjamin faz em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Ao colocar intuitivamente o fazer no centro de sua produção, Zilamar constitui um projeto que depende das mãos, das suas mãos, que encontraram numa prática tradicional, a feltragem, seu meio de expressão, lugar onde a artista aborda de uma perspectiva existencial: o homem, a natureza e o tempo. A passagem do artesanato às artes visuais foi lenta e gradual.

A percepção da importância do fazer manual começa na infância, observando os avós europeus realizando pequenos afazeres domésticos, e o pai desenhando projetos para indústria. Estimulada pelos exemplos, aprende costura, bordado, tecelagem e feltragem. Adulta, cursa e exerce instrumentação cirúrgica de cujo universo importou o gosto pelo vermelho, os cortes e as cavidades. Mas somente à medida que as mãos se liberaram da finalidade – e com a observação de outros artistas – é que seus objetos adquirirem autonomia necessária às artes visuais.
Alegoricamente, talvez seja possível situar sua síntese na obra Sticker. Nela, a artista utiliza o feltro para produzir um grande mural de pequenas flores. O mesmo mural alude às Ninfeias, de Monet, e aos adesivos colados por jovens nas ruas, com pequenos desenhos ou assinaturas. É um presente que sobrepõe em camadas seu passado pessoal, a tradição da pintura e das arts crafts e estabelece um diálogo com o contemporâneo. O resultado é uma leitura pessoal do artesanato, da decoração, das artes visuais.

II
Dito isto, o trabalho de Zilamar deve ser situado no Brasil, onde ao longo das últimas décadas nota-se a projeção de trabalhos em tecidos e técnicas sobre tecido, em obras como a de Artur Bispo do Rosário, José Leonilson, Ernesto Neto, Rosana Paulino, Sonia Gomes, entre outros.

Com diferentes abordagens, esses artistas introduziram e ajudaram a consolidar o tecido como suporte e meio de expressão que ia além do aspecto artesanal ou decorativo, pautando debates acerca da loucura, do lugar do fazer manual, do alcance do meio na produção de significados gerais, da interação entre espectador e obra, da identidade. Isso significa dizer que todas as vezes que uma técnica, forma ou ideia é introduzida num determinado campo, os termos devem ser redefinidos, o que ocasiona um alargamento do campo. Nesse arrolado de casos, constata-se de modo claro uma contribuição desses artistas à arte, tanto nas faturas, nas formas, quanto nos significados.

A exposição A mão e o tempo levanta mais uma vez o debate sobre o fazer e o tempo. Há mais do que uma simples analogia entre as técnicas utilizadas pelos artistas, há uma intenção inerente ao fazer artístico, ainda que intuitiva ou inconsciente. Como disse certa vez Erza Pound, “os artistas são as antenas do tempo”. Nesse sentido, Zilamar recolhe das tradições familiar e artística para produzir objetos com materiais orgânicos: lã de carneiro, pigmentos vegetais e algodão. A matéria aí tem sentido forte. E a fatura é a própria forma. Assim, a fatura é coisa e índice do tempo pessoal, humano e ancestral. É matéria condensada em sintonia com a técnica. É a um só tempo leveza e peso: acúmulo, próprio do fazer têxtil, sem que lhe pese o passado. É processo de elaboração de memórias e abertura para uma nova realidade.

Nesse sentido, a escolha por matérias orgânicas, como o pelo de carneiro e pigmentos naturais, podem estar associados a dois fatores: a certa perspectiva que ainda se norteia pelo princípio da imitação da natureza e a uma síntese de aprendizados que resultam na ideia, mesmo que difusa, de cura pelas mãos, uma vez que seu universo pessoal passa dos saberes tradicionais à medicina. É ascese, à medida que se libera dos aspectos funcionais e decorativos. Assim, seu trabalho começa com as mãos, mas se encerra na experiência existencial da imaginação que cada vez mais ganha impulso. Trata-se de uma obra que mobiliza tanto os sentidos quanto as memórias individuais num continuum que se estende da realidade mais ordinária à imaginação.

O ser humano se coloca em relação à natureza na mesma medida que é um animal que fala e que é capaz de produzir objetos que transformam sua maneira de perceber o mundo. Isso modifica suas noções de tempo e o coloca consciente se sua existência à medida que tece seu destino. Ao deixar a divisão dos campos de conhecimento e compreender todos num mesmo tempo e lugar, Zilamar dialoga com as próprias questões e com aquelas de seu tempo de modo comum, na medida que essas questões podem ser de todos. Sua resposta às próprias experiências é a duração de um fazer incessante e curioso. O fazer constitui a própria potência transformadora e dela é extraída a consciência de seu processo.